Espuma dos dias — Globalização à la carte. Por Heiner Flassbeck e Friederike Spiecker

Seleção e tradução de Francisco Tavares

6 min de leitura

Globalização à la carte

Por Heiner Flassbeck e  Friederike Spiecker

Publicado por   em 23 de Janeiro de 2023 (original aqui)

 

A globalização tornou-se o tema de conversa de toda a gente. As pessoas já não querem ser tão dependentes, dizem muitos. No futuro, não se pode simplesmente contar com os ganhos de eficiência da globalização, dizem outros. Deve ser possível produzir todos os produtos importantes em casa, acredita a maioria. Apenas no caso de matérias-primas que não temos, argumentam os políticos dos países industrializados, gostaríamos de manter os mercados abertos a todo o custo.

A globalização à la carte, por assim dizer, é o que as pessoas e os políticos dos países industrializados querem. Após a globalização total que o Norte global ofereceu ao Sul global nos anos 90, agora globalização selectiva, na qual todos têm o cuidado de não se tornarem demasiado dependentes.

Perguntamo-nos de acordo com que regras deve tal selecção ter lugar. A abertura total, o princípio dos mercados livres, era simples. A abertura selectiva, por outro lado, é complicada e não existe nenhuma instituição disposta e capaz de moderar as negociações de uma tal globalização. Além disso, há a simples questão de saber quem devem ser os parceiros na globalização selectiva. Os países em desenvolvimento tiveram a experiência de que os mercados livres não eram de modo algum tão benéficos para eles como tinham sido prometidos por todas as partes.

Tomemos um exemplo actual. Nos seus dois primeiros mandatos (2003-2011), o Presidente brasileiro Lula da Silva teve a experiência de que a abertura dos mercados que era recomendada pelo Norte caiu-lhe massivamente sobre os pés. Com a abertura dos mercados de capitais, a moeda brasileira tornou-se a bola de pancada dos especuladores e apreciou (em termos reais) tanto durante um período de dez anos que a indústria brasileira perdeu enorme terreno na concorrência internacional. O resultado foram os défices da balança de transacções correntes e o desemprego. As ondas subsequentes de desvalorização vieram demasiado tarde para dar ao Brasil impulsos positivos suficientes através do comércio internacional. Em vez disso, o Brasil lutou com elevadas taxas de juro e de inflação. Este cocktail de condições macroeconómicas desastrosas acabou por preparar o terreno para o governo de direita sob Bolsonaro.

O segundo governo, sob Lula da Silva, falou de uma “guerra monetária” na altura. Se, durante a sua visita a Brasília há algumas semanas, o presidente alemão tivesse trazido a Lula a vontade do governo alemão de trabalhar no seio do G7 e na Europa para um quadro monetário em que a especulação com as moedas já não tem hipótese, o caloroso aperto de mão de felicitações para o terceiro mandato teria sido acompanhado de uma ajuda substancial.

Mas não se pensa nisso. A Alemanha e a Europa orgulham-se da sua união monetária e do mercado único, mas não poupam esforços para uma ordem financeira global sensata. Os EUA e a Grã-Bretanha são estritamente contra qualquer mudança porque Wall Street e a cidade de Londres estão a ganhar bom dinheiro com a especulação. Além disso, o Fundo Monetário Internacional (FMI), em nome dos EUA e da Europa, impôs o neoliberalismo aos países em desenvolvimento em todos os continentes, assim que qualquer um país se meteu em apuros. Os latino-americanos e os africanos podem cantar muitas canções sobre como as receitas do FMI falharam regularmente e levaram às maiores turbulências políticas imagináveis.

 

O comércio livre foi uma fraude

Consequentemente, mesmo o comércio “livre” com mercados financeiros abertos convidando à especulação sob o regime do FMI é uma fraude para os países em desenvolvimento. Quem pode esperar encontrar, no resto do mundo, sequer um pingo de vontade de se envolver no comércio selectivo de mercadorias nas condições de mercados de capitais livres, em que as matérias-primas, de todas as coisas, estão isentas de selecção?

A globalização à la carte não vai ser assim tão fácil. A Alemanha em particular, com o seu enorme sector de exportação e os seus injustificadamente enormes excedentes de conta corrente, é o proverbial elefante na loja de porcelana. Ninguém tem mais a perder se o frágil sistema global entrar em colapso. Aqueles que querem mudança devem fazer propostas construtivas que vão muito no sentido de acomodar os países em desenvolvimento, e não se preocuparem apenas com as suas próprias vantagens.

 

O que é que o mundo precisa?

Cinquenta anos após o fim de Bretton Woods, o mundo precisa novamente de um sistema económico e monetário global construído sobre o reconhecimento de que o comércio e as finanças são inseparáveis. As empresas que querem ser bem sucedidas no comércio internacional devem, ao mesmo tempo que a nível nacional, desenvolver vantagens absolutas sobre os seus concorrentes. Devem ser mais baratas – tendo em conta a qualidade. As vantagens comparativas dos custos no comércio internacional mantidas pelos economistas durante séculos são uma quimera.

O que é verdade para as empresas, porém, não é verdade para os países. Se muitas empresas de um país são bem sucedidas em termos de aumento de produtividade, então, em condições económicas razoáveis, os salários nesse país devem aumentar de tal forma que a vantagem da produtividade já não funcione a favor das empresas desse país nas comparações internacionais. Com uma produtividade mais elevada, os custos unitários do trabalho aumentam tanto como noutros países com menor crescimento da produtividade.

Se os salários aumentam a taxas diferentes em relação à produtividade interna entre países, surgem diferenciais de inflação que trazem vantagens absolutas a países inteiros, nomeadamente aqueles com as taxas de inflação mais baixas. É portanto imperativo que os diferenciais de inflação sejam equilibrados pelo sistema monetário.

As moedas dos países com baixas taxas de inflação devem apreciar-se e vice-versa. As taxas de câmbio reais constantes, ou seja, as posições competitivas constantes dos países, são o cerne da solução para os problemas da globalização. A concorrência ao nível dos países é exactamente o oposto do que o mundo precisa. As posições das empresas podem mudar da mesma forma que num mercado único, mesmo com taxas de câmbio reais constantes, para que os benefícios da concorrência sejam preservados sem falir sociedades inteiras e causar ondas de emigração.

Consequentemente, o mundo precisa de um sistema comercial complementado por um sistema monetário que assegure que nenhum país tenha vantagens ou desvantagens absolutas a longo prazo. O que significa que nenhum país deve ter défices permanentes na conta corrente e nenhum deve ter excedentes permanentes na conta corrente. Esta é a única forma de criar um novo começo que depende da integração dos países em desenvolvimento e da cooperação, em vez do confronto.

 

A rivalidade está fundamentalmente fora de lugar

Em geral, a atitude dos países industrializados em relação aos países em desenvolvimento deve mudar fundamentalmente. A rivalidade é tão desajustada como o antagonismo natural do Norte com o Sul, que se repete constantemente nas organizações internacionais. Não há nenhum diplomata do Norte que não “saiba” que os países em vias de desenvolvimento são os antagonistas do seu próprio país. Estas são formas de colonialismo intelectual a que há que pôr fim urgentemente.

A rivalidade com a China, que acaba de ser descoberta pela política externa alemã, também não se enquadra de modo algum numa estratégia de cooperação. Aqueles que descuidadamente declaram a China como rival e falam de uma ordem baseada em regras com os “parceiros de valor” do Norte já perderam a oportunidade de falar olhos nos olhos com os países em desenvolvimento.

Isto também se aplica e especialmente à cooperação climática. Os resultados da recente Conferência Mundial do Clima no Egipto provam quão pouco o Ocidente está disposto a alterar o seu modelo comercial em favor das partes mais pobres do mundo e assim reduzir os seus instrumentos de dominação, embora isto seja também do interesse a longo prazo das suas futuras gerações.

A criação de um fundo para compensar os danos relacionados com o clima em países particularmente vulneráveis à crise climática fala por si, para além do seu financiamento não vinculativo e da sua política de distribuição pouco clara. O que não foi estabelecido é um fundo para tornar as tecnologias verdes e o correspondente know-how disponível em todo o mundo a baixo custo e assim prevenir ou pelo menos reduzir os danos potenciais desde o início. Além disso, isto colocaria os produtores de matérias-primas fósseis sob pressão devido à queda da procura e tornaria mais difícil o desenvolvimento e exploração de novos depósitos fósseis.

Porque é que isto não está a acontecer? No Ocidente, as pessoas sonham em ganhar tão bem com a liderança tecnológica na produção amiga do clima que possam manter a prosperidade a que estão habituadas enquanto gerem a mudança estrutural no sentido da neutralidade climática. Assim, não se quer difundir este conhecimento a baixo custo ou mesmo gratuitamente, mas ao mesmo tempo espera-se que os países mais pobres se comprometam com metas vinculativas de redução de CO2. Porque deveriam os países em desenvolvimento, que não são de modo algum a principal causa das alterações climáticas, mas certamente os principais prejudicados, concordar com uma camisa de forças tão quase colonialista? Teriam de comprar a dispendiosa tecnologia ocidental com a sua mão-de-obra barata, o que é pouco provável que possam fazer em medida suficiente para a protecção do clima.

Uma política internacional de protecção do clima verdadeiramente bem sucedida, ou seja, que vá além da política simbólica e do Ocidente moralmente verde, será o teste decisivo para uma globalização justa no futuro. O Ocidente é chamado a acompanhar as suas calorosas palavras de apoio à democracia, aos direitos humanos e à protecção do clima com actos.

_________________

Os autores

Heiner Flassbeck [1950 – ], economista alemão (1976 pela Universidade de Saarland), foi assistente do Professor Wolfgang Stützel em questões monetárias. Doutorado em Economia pela Universidade Livre de Berlim em julho de 1987, tendo por tese Prices, Interest and Currency Rate. On Theory of Open Economy at flexible Exchange Rates (Preise, Zins und Wechselkurs. Zur Theorie der offenen Volkswirtschaft bei flexiblen Wechselkursen). Em 2005 foi nomeado professor honorário na Universidade de Hamburgo.

A sua carreira profissional teve início no Conselho Alemão de Peritos Económicos, em Wiesbaden, entre 1976 e 1980; esteve no Ministério Federal de Economia em Bona até janeiro de 1986; entre 1988 e 1998 esteve no Instituto Alemão de Investigação Económica (DIW) em Berlim, onde trabalhou sobre mercado de trabalho e análise de ciclo de negócio e conceitos de política económica, tendo sido chefe de departamento.

Foi secretário de estado (vice-ministro) do Ministério Federal de Finanças de outubro de 1998 a abril de 1999 sendo Ministro das Finanças Oskar Lafontaine (primeiro governo Schröeder), e era responsável pelos assuntos internacionais, a UE e o FMI.

Trabalhou na UNCTAD- Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento desde 2000, onde foi Diretor da Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento de 2003 a dezembro de 2012. Coordenador principal da equipa que preparou o relatório da UNCTAD sobre Comércio e Desenvolvimento. Desde janeiro de 2013 é Diretor de Flassbeck-Economics, uma consultora de assuntos de macroeconomia mundial (www.flassbeck-economics.com). Colaborador de Makroskop.

Autor de numerosas obras e publicações, é co-autor do manifesto mundial sobre política económica ACT NOW! publicado em 2013 na Alemanha, e são conhecidas as suas posições sobre a crise da eurozona e as suas avaliações críticas sobre as políticas prosseguidas pela UE/Troika, nomeadamente defendendo que o fraco crescimento e o desemprego massivo não são resultado do progresso tecnológico, da globalização ou de elevados salários, mas sim da falta de uma política dirigida à procura (vd. The End of Mass Unemployment, 2007, em co-autoria com Frederike Spiecker).

Friederike Spiecker é licenciada em economia e estudou economia na Universidade de Konstanz de 1986 a 1991. Trabalhou no departamento económico do Instituto Alemão de Investigação Económica em Berlim. Hoje trabalha como jornalista económica freelancer em questões de política económica nacional e internacional. Co-autora de The End of Mass Unemployment, 2007.

 

Leave a Reply